sábado, 3 de maio de 2014

Memórias de Maio

tortosendo

















Durante 48 anos, Maio foi um mês proibido em Portugal. A Censura cortava mesmo alusões a Maio que, às vezes, eram meras saudações à Primavera, porque desconfiavam de metáforas ao tempo novo. Para já não falar de tudo o que tinha a ver com a festa dos trabalhadores, o 1.º de Maio, cuja simbologia, de alcance universal, se tornou, ao mesmo tempo, uma data de festa e de luta, qualquer coisa que é inquebrantável do progresso e da felicidade humana. Por isso, esse dia guarda intacta toda a utopia que um acontecimento colectivo pode conter. Por isso, decerto, Maio carrega consigo uma história tão longa de proibições que ditaduras, vigilantes, desejavam tornar eternas.

A verdade é que sempre o 1.º de Maio foi dia de protesto, de reivindicação e de muitas indignações. Em Portugal, furiosamente proibido, não faltaram manifestações de protesto contra o salazarismo que originaram violentas cargas da polícia de intervenção e muitas prisões, como aconteceu, por exemplo, em Lisboa, em 1961 e 1962. Uma bandeira vermelha, gestos vibrantes de protesto e palavras ou canções semeadas ao vento, era quanto bastava para a fúria da besta repressiva.
Lembro-me sempre de como o 1.º de Maio, no Tortosendo, originava vagas de prisões e do medo que os instrumentos repressivos da ditadura instalava na vila, que a PIDE chamava de "vermelha". Mas os operários do Tortosendo, muitos ligados ao Partido Comunista, não se vergavam e tentavam assinalar a data, às vezes disfarçando a festa proibida de pic-nic, ao fim da tarde e do dia de trabalho, perto da Ponte Pedrinha, à beira Zêzere. Até isso reprimiam! Houve um ano, em que a vila parecia estar em pé de guerra, com metralhadoras à flor da rua, na presunção que assim baniam aquele dia do calendário. Lembro-me bem das notícias preocupantes e das prisões trazidas pelo Américo de Oliveira, que era meu camarada de trabalho no jornal, ou pelo José Laço Pinto, correspondente do "Jornal do Fundão", que era uma pessoa excepcional e nos deixou há meses.
O Américo de Oliveira movimentou muita solidariedade à volta dos presos políticos, e partia sempre com campanhas de donativos para as famílias, que ficavam à mercê da miséria. Com o seu ar sereno, uma vez (penso que na última vaga de prisões), o Américo, que desencadeara uma dessas campanhas, foi pedir donativo ao vice-presidente da Câmara, a quem no Fundão chamavam "o Tózinho da Notária", que era uma pessoa que vivia rodeada de medos. O Américo de Oliveira, que ele conhecia bem, explicou-lhe ao que ia. Ele ficou branco. Entregou-lhe um donativo, em exercício caridoso, pedindo-lhe que ninguém soubesse de nada. E, tremelicando de medo, avisou:
-- "Tenha cuidado. Se a PIDE sabe uma coisa destras, é a nossa desgraça..."
O Américo de Oliveira explicou-me que isto era a sua defesa, em caso de intervenção da PIDE: uma actividade tão legal que até tinha sido previamente comunicada ao vice-presidente da Câmara...
O José Laço era uma pessoa de grande cordialidade, que abria sempre um sorriso às circunstâncias difíceis e que realizou um trabalho notável de informação sobre os problemas sociais do Tortosendo. Fez do"Jornal do Fundão" a sua tribuna. Foi um extraordinário correspondente e viveu intensamente batalhas a favor da instalação do Ensino público, da habitação social, de grandes e pequenas questões que, nos anos 60 e 70, condicionavam o quotidiano tortosendense. Essa sua forma de agir reflectia-se no associativismo do Unidos, a que deu grande visibilidade, defendia o interesse público e a situação das pessoas com unhas e dentes.
Há tempos, escrevi neste espaço um texto de memória sobre rostos de cidadãos do Tortosendo, que lutaram pela liberdade, a que chamei os combatentes da sombra.Alguns, precisamente, foram presos por que lutavam pelo direito a festejarem o dia do Trabalhador. José Laço faleceu pouco depois.
Agora, neste Maio de sol, festejado em liberdade, sem os mastins da PIDE e da repressão a morderem as canelas dos cidadãos, junto aos combatentes da sombra, o nome de José Laço Pinto. E uma cantiga do Maio, do Zeca, como um aceno de esperança nestes dias sombrios, em que os trabalhadores e as pessoas parecem ter sido condenados ao desespero.

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